10 fevereiro, 2008

A SOCIOLOGIA NÃO VOLTA ÀS AULAS

Publicado em O Estado de S. Paulo
[Caderno Aliás, A Semana Revista],

Domingo, 10 de fevereiro de 2008, p. J7.

A sociologia não volta às aulas

José de Souza Martins*


Os freqüentes indícios de insuficiências e ineficiências na educação brasileira indicam a ausência de uma diretriz educacional que oriente o ajustamento da escola ao mundo contemporâneo e ao seu melhor legado. A sociedade muda todo o tempo, mas em nosso País a escola não acompanha o ritmo dessa mudança. O aluno fica no meio, confuso, entre a mudança social que o alcança e a educação que não o ajuda a situá-la e compreendê-la. Nem o ajuda a nesse processo decidir entre o que dissemina os valores de afirmação dos direitos sociais e da grandeza humana possível, de um lado, e, de outro, o aniquilamento desses valores que está nos riscos de toda mudança capturada e instrumentalizada por agentes de interesses anti-sociais.

Na boa linguagem sociológica, a escola, numa situação social crítica, como a nossa, tende à anomia. Tende àquela situação em que o entendimento que as pessoas têm das relações sociais não corresponde ao que a realidade é, o que as transforma em vítimas e não em agentes ativos da mudança. Esse desencontro, entre consciência social e sociedade, afeta particularmente os jovens, divididos entre os valores e orientações do grupo familiar, e de grupos de referência altruístas, e as solicitações de um mundo, cheio de incógnitas e desafios, que se abre diante deles continuamente e os questiona. É como se a sociedade em que vivem não tivesse normas nem valores e as normas e valores que conhecem já pouco ou nada valessem. Nessa privação, uma das poucas instituições que poderiam ajudá-los no processo de ressocialização de que carecem, é a escola. Porém, ela se omite, em vez de educá-los e ressocializá-los para os dilemas da mudança, sem neles anular a diversidade social e cultural pela qual transitam, quase sempre num único dia.

Várias causas concorrem para esse forte traço do nosso subdesenvolvimento. Destaco-lhe dois aspectos. De um lado, o descompasso e a distância social e cultural que separa gerações, abrindo abismos entre elas, agravando desenraizamentos e a desorganização da vida que não raro os acompanha. De outro lado, os descompassos decorrentes dos ritmos desiguais do crescimento econômico e do desenvolvimento social. Mesmo as famílias e os jovens que não passam pela experiência do desenraizamento súbito e profundo, sobretudo na classe média, entram nas crises dos desencontros de uma sociedade que, cada vez mais, muda a cada dia e, todos os dias, se torna novamente misteriosa e alienante.

O alarmante assédio das escolas, dos adolescentes e dos ambientes juvenis pelos traficantes de drogas e pela sociedade do crime tem um dos seus fatores justamente na deterioração dos vínculos comunitários que decorre de mudanças sociais anômicas. O "barato" da droga passa a ocupar vazios deixados pela privação de referências culturais oníricas e pela supressão das bases sociais da utopia e da esperança. Seu efeito perverso é, ainda, potencializado pelo comunitarismo da cumplicidade que geralmente há em grupos delinqüentes.

O entendimento da realidade social em crise que assedia e afeta a situação do aluno na escola pede que, honestamente, tenha ele acesso no ensino médio à sociologia básica que o capacite a compreender o outro e o diferente e, na mediação do outro, compreender-se. Para que possa ressocializar-se continuamente a partir dos desafios que nesse sentido encontra ao longo da vida.

O movimento pela sociologia no ensino médio, no entanto, se arrasta sem rumo até hoje, perturbado pela compreensão pobre que dele tem os governos, as escolas e o professorado. Uns porque tem como referência uma economia de resultados, em que o bom e apropriado ensino é confundido com o número de alunos que uma escola catapulta no vestibular das boas universidades públicas. Pouco se fala do que acontece com não poucos desses alunos depois, nas desistências, nas opções erradas e nas frustrações freqüentes, pagas pelo governo. Outros, porque supõem que a missão do professor de sociologia é a de arrebanhar os jovens para as novas religiões em que se converteram muitos partidos de esquerda.

Os próprios Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, do Ministério da Educação, e os livros didáticos que por eles se pautam, constituem nesse sentido um problema, pois preconizam o cumprimento do conteúdo dos quatro anos de duração do curso universitário de Ciências Sociais no pouco tempo de que o ensino médio dispõe para a sociologia. Um convite à superficialidade da falsa erudição. No pólo oposto surgiu o argumento de que a sociologia é disciplina transversal cujo conteúdo se pode ministrar nas aulas de matemática ou de biologia. A tese do transversal é um desses recursos de linguagem para acomodar interesses e resolver na aparência problemas que pedem soluções ousadas e criativas.

Mas, o objeto da sociologia e a formação requerida pelo sociólogo se diferenciam significativamente do que ocorre na matemática e na biologia. O objeto da sociologia é constituído pelo princípio da contradição e pelo da identidade e não só pelo princípio da identidade. É objeto dotado de historicidade e seu sujeito de referência é um ser humano pensante, diferente de um número ou de uma minhoca. Na perspectiva transversalista, a sociologia se anula e descumpre sua essencial função ressocializadora, que daria ao estudante os instrumentos teóricos e metodológicos que, ao longo da vida, pudesse utilizar para decifrar e superar, criativamente, as contradições e irracionalidades que são constitutivas do social. A impugnação da sociologia em nome de sua suposta transversalidade é simples e pobre ideologia.

Quanto mais demorarmos para colocar esse meio de discernimento ao alcance dos jovens, mais se agravará o analfabetismo cultural que limita o alcance e empobrece as outras disciplinas do ensino médio. É pobre a compreensão que os estudantes podem ter da matemática ou da biologia se não compreenderem sociologicamente o lugar social do conhecimento e seu próprio lugar na sociedade que os desafia.

*José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo