29 junho, 2010

Entrevista com Santo Conterato‏

SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO:


Entrevistas com Márcio da Costa e Santo Conterato. Junho de 2009

Em junho de 2008, o Presidente da República em exercício sancionou a lei que torna obrigatória a inclusão das disciplinas de Sociologia e Filosofia em todas as instituições de Ensino Médio do país. Essa novidade levanta muitos pontos para discussão e análise. Um deles é sobre o impacto dessa lei na demanda por profissionais da área. E sem dúvida alguma o próprio sentido da Sociologia como disciplina precisa ser posto em relevo. A Revista Habitus traz duas entrevistas com diferentes pontos de vista sobre o assunto. Cada entrevistado respondeu a três questões, sendo duas delas comuns a ambos e uma terceira específica para cada um. Falaram conosco Márcio da Costa, professor associado da UFRJ, com experiência na área de educação, ênfase em sociologia da educação, política educacional, teoria sociológica, avaliação de impacto de políticas públicas e avaliação educacional; e Santo Conterato, diretor administrativo da Associação Profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro e organizador do livro “A profissão do sociólogo e a sociologia no Ensino Médio” (Rio de Janeiro: APSERJ, 2006). As entrevistas foram realizadas por Juliana Marques da Silva e Márcia Regina Castro Barroso, estudantes de graduação em Ciências Sociais na UFRJ.

Revista Habitus: A importância do ensino da sociologia no ensino médio não é um consenso. Seu reconhecimento está, em grande parte, apoiado na concepção de que ele pode auxiliar na formação de valores relacionados à cidadania do modelo democrático liberal no qual estamos inseridos. O que o senhor pensa a respeito?

Márcio da Costa: Minha posição pode ser antipática diante de meus colegas sociólogos. A própria pergunta já permite antever o caráter doutrinário que os defensores da disciplina sociologia no ensino médio pretendem lhe atribuir. A sociologia não é uma disciplina normativa, como os conscientizadores pretendem configura-la. Valores são objeto da sociologia. É claro que, como ciência, filha do iluminismo, ela guarda afinidades com elementos característicos da modernidade, mas está longe de ser um bom recurso para ensinar valores de tal ou qual tipo. Aliás, sou fortemente cético quanto à possibilidade de disciplinarização de valores. Na história da educação, são fartos os exemplos de tentativas de usar disciplinas escolares como veículo de moralização compulsória. A sociologia para valer não se presta ao proselitismo político, ao discurso moralizador, mesmo que travestido de feições supostamente liberais ou afinadas com retóricas pró direitos e liberdades. A ditadura militar, no Brasil, tentou ordenar todo o currículo nacional a partir de um eixo moralizante constituído pelas disciplinas Educação Moral e Cívica , Organização Social e Política do Brasil e Estudo de Problemas Brasileiros, respectivamente no nível fundamental, médio e superior. Foi um fiasco.
Ao final da ditadura, autores de esquerda, imbuídos da rationale gramsciana, resolveram “aproveitar as brechas” – para preservar a retórica dessa corrente – e cometeram aberrações como, por exemplo, livros de OSPB. Boa parte de nossos livros didáticos de história ou geografia são manuais doutrinários que, ao se pretenderem “contra-hegemônicos”, são apenas a outra face dos manuais da ditadura, esses eivados do ultra-nacionalismo do Brasil Grande, Brasil Potência. É como se substituíssemos as decorebas de datas, fatos, heróis, devidamente filtrados pelos guardiões conservadores da verdade oficial, por tratamentos autodenominados críticos, mas que, no fundo, eram igualmente doutrinários, recheados de denúncias, sem apreço pelo teste das evidências, pouco afeitos ao verdadeiro debate, à apresentação de versões diversas, a aquilo que parece mais próximo da possível versão escolar de uma formação de base científica.
Temo que a defesa da sociologia como disciplina escolar seja apenas sucedânea desse afã conscientizador, nefasto e ineficaz. Nefasto porque empobrece a já tão precária formação de nosso alunado. Ineficaz porque se baseia em esperança naquilo que chamamos de “socialização perfeita”. O sonho dürkheimiano para a educação, que supõe alunos passivamente absorvendo conteúdos e valores transmitidos por seus mestres. Felizmente, parece que isso não funciona muito bem.
No fim das contas, a sociologia será apenas mais uma, entre as 12 ou 13 disciplinas, todas com conteúdos ultra-especializados, apreendidos e ministrados com incrível precariedade pelo sistema escolar submetido à expectativa de apreensão de uma overdose de conhecimentos de qualidade e utilidade, no mínimo duvidosos. As fantásticas “batatas” extraídas das redações de vestibulares ou de coletâneas de provas de professores, são uma das demonstrações dessa sopa de entulho mal digerida.
Penso a introdução da sociologia como disciplina obrigatória como resultante, esquematicamente, de três vetores: 1) a ignorância sobre o que é a sociologia e conseqüente esperança de que ela cumpra papel “civilizatório”, uma espécie de manual de boas maneiras cívicas; 2) a aparentemente libertária vertente gramsciana, que pretende fazer da sociologia mais um espaço institucional de propaganda e proselitismo político e; 3) a busca de criação de uma reserva de mercado para licenciados em ciências sociais, um curso superior relativamente fácil de entrar, igualmente fácil de sair, mas com forte imprecisão quanto aos destinos profissionais de seus egressos.

Santo Conterato: No meu entendimento, e com base na experiência do trabalho pela inclusão da Sociologia nos parâmetros curriculares do ensino médio, o questionamento com relação à presença da disciplina na grade curricular não se referia propriamente à importância do ensino da Sociologia e sim, em primeiro lugar, a mais uma disciplina na grade. A programação das secretarias prontinha, com as disciplinas tradicionais arrumadinhas, com seu espaço definido, não comportava, na comodidade dos burocratas, mais uma disciplina que implicava na modificação do esquema já montado. Em segundo lugar, a reação de donos de estabelecimentos privados de ensino que afirmam que, com mais uma disciplina, há necessidade de mais docentes, onerando seus cofres, E, finalmente, a inércia dos acadêmicos lotados nos departamentos das IFES preocupados com as bolsas fornecidas pelo MEC, entendiam que a introdução da sociologia no ensino médio não lhes traria ganho nenhum.
O reconhecimento, com certeza, tem a ver com a força das argumentações sobre a importância da sociologia, não tanto como simples auxiliar na formação de valores cívicos, mas, e principalmente, que podia oferecer ao estudante novos modos de pensar ou construção e desconstrução de modos de pensar. Ou seja, a proposta do pensamento sociológico é o de realizar a desnaturalização das concepções ou explicações dos fenômenos sociais. E, assim, contribuir para um ensino de melhor qualidade.

Revista Habitus: O conteúdo da disciplina não será mais ministrado de uma forma transversal. Precisará, portanto, de um formato específico. Quais os desafios do curso de licenciatura, na sala de aula e dentro da Universidade, na sua relação com o bacharelado?

Márcio da Costa: Não será fácil ensinar sociologia de verdade, uma invenção do final do século XIX, que pressupõe uma longa trajetória intelectual percorrida pela humanidade, que incorpora complexos debates herdados da filosofia e da economia e que ao tentar compreender a novidade do mundo moderno apresenta vertentes cujas características não são de apreensão trivial. Preferiria que nossos alunos estivessem expostos a mais história, filosofia e literatura. Conhecer mais as seqüências dos acontecimentos relevantes do passado, traços de culturas e civilizações diversas, a história do pensamento, ajudaria na compreensão das reflexões que a sociologia desenvolve a partir do século XIX.
Como já disse, temo que a sociologia como disciplina escolar seja um pastiche doutrinário, pretensamente revolucionário, e/ou algo que não consegue fazer sentido pois os estudantes não dispõem de um ferramental básico anterior. Abordar a sociologia com recortes temáticos como fato social, contato social, interação, classes sociais, estratificação social, movimentos sociais, instituições, cultura, globalização, pós-modernidade, minorias, nacionalismo, localismo, mudanças tecnológicas, desenvolvimento ou democracia me parece uma tentação a tratamentos normativos. Partidas entre fenômenos sociais a que se dedicam, as teorias sociológicas tendem a ficar irreconhecíveis. Por outro lado, a apresentação das teorias sociológicas clássicas de forma mais íntegra, abrindo terreno para suas descendentes contemporâneas, provavelmente é algo distante das possibilidades no nível médio, maçante e complicado, especialmente considerando a overdose de conteúdos a que os alunos já são submetidos.
Felizmente, não me dedico a tratar profissionalmente do ensino de sociologia nesse nível, pois não consigo enxergar qualquer saída realmente boa. Sem maior reflexão sobre o tema, acho que optaria por fazer alguma coisa como uma história do pensamento social no século XIX, contextualizando as polêmicas e preocupações da época, abrindo margem para a apresentação esquemática das matrizes fundantes do pensamento sociológico, trazendo a atualização para o desenvolvimento dos problemas contemporâneos, a partir dos modelos clássicos e suas derivações. Não creio que seria possível faze-lo satisfatoriamente no tempo previsto. A redundância com a história e a filosofia me parece inevitável.

Santo Conterato: Entendo que há três questões aqui: a relação licenciatura/bacharelado, a licenciatura na Universidade e a relação licenciatura/sala de aula enfrentada pelo licenciado. Nós sempre defendemos que o estudante que cursa a licenciatura deve ter a fundamentação fornecida pelo bacharelado. Do contrário, continuará acontecendo o que imperou na pedagogia tradicional do ensino em nossas escolas em que se deu a predominância ao método em detrimento do conteúdo. E assim, qualquer professor pode lecionar qualquer disciplina, com está acontecendo ainda hoje, em algumas escolas, com o ensino da sociologia, por exemplo. É imperioso que o licenciado, antes de aprender as técnicas, os métodos, saiba manejar os conteúdos da disciplina. É o óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues. Ou seja, antes de saber como ensinar o profissional deve saber o que ensinar.
A licenciatura na Universidade está enfrentando um desafio cada vez mais difícil de vencer. Quem procura a licenciatura? Quem ministra os conteúdos do ementário da licenciatura? E como são ministrados esses conteúdos: métodos e técnicas de ensino? Todos os que procuram a licenciatura, a procuram baseados num projeto de futuro profissional, ou por falta de perspectiva de alternativas futuras de trabalho? Os mestres encarregados de orientar os licenciandos o fazem programadamente ou para mero cumprimento de obrigação? E as orientações são baseadas a partir do real que o profissional encontrará ou dentro de um esquema tradicional acadêmico distanciado da realidade da escola de ensino básico? No meu modo de pensar esses desafios são cruciais, em especial para os mestres orientadores.
A relação licenciatura/sala de aula enfrentada pelo licenciado (questão que deve estar presente aos orientadores das licenciaturas), no meu entendimento, é dramática: a alunada já vem para a escola com problemas familiares, problemas pessoais de adolescente, encontra as salas de aula mal arrumadas, a própria escola quase caindo por falta de conservação. O professor de sociologia (sempre mal pago) tenta preparar uma aula partindo de textos mais complexos para os mais simples. Será que a transposição para uma linguagem acessível não corre o perigo de perder o rigor científico? E a cabeça cheia de problemas da garotada tem condições de assimilar conteúdos sociológicos que exigem um mínimo de raciocínio lógico? Todas estas questões devem ser consideradas quando pensamos na possibilidade da eficácia do ensino da Sociologia na escola fundamental e no preparo dos futuros mestres.

Revista Habitus: Márcio da Costa, o senhor se posiciona contra a inclusão da Sociologia no Ensino Médio. Quais os aspectos negativos dessa política?

Márcio da Costa: Há, em primeiro lugar, um elemento raramente tratado nessa polêmica: a forma nada adequada com que a sociologia entra nos currículos. Não é razoável remeter ao Congresso Nacional a decisão sobre currículos escolares. Há fóruns bem mais adequados para tratamento dessa questão. Creio que um dos aspectos negativos dessa política é o próprio acolhimento da demanda pelo Congresso, alargando o caminho para que questões dessa ordem passem a se tornar temas de decisão legislativa.
Por outro lado, tomada a partir da ótica particularista de interesses corporativos e de intenções políticas apartadas dos mais graves problemas educacionais, essa decisão agrava o caráter enciclopédico dos currículos no Brasil. Vai na contramão do que deveríamos estar fazendo em nosso ensino básico: reduzindo a grande carga de conteúdos que é comportada por uma pequeníssima parcela do alunado, concentrando o foco no domínio efetivo de conhecimentos de valor realmente abrangente e duradouro. O conteúdo absurdamente detalhado e formalista das ciências naturais, da língua portuguesa e das matemáticas, ganha a “contribuição” das ciências humanas que pareciam mais favoráveis a uma educação mais compreensiva.
Randall Collins descreveu preciosamente a inflação educacional. Podemos fazer um paralelo com a inflação de conteúdos escolares. Qual será o próximo passo ou a próxima corporação que tentará impor sua reserva de mercado ao sistema educacional? Psicólogos? Astrônomos? Biofísicos? Geólogos? Juristas? Economistas? Profissionais universitários do Brasil uni-vos? Há boas chances de espetar algumas horinhas nas escolas. Por quê não?

Revista Habitus: Senhor Santo Conterato, os sindicatos dos sociólogos foram atores políticos fundamentais para o reconhecimento da relevância do tema na agenda política governamental ou não? De quem partiu essa demanda?

Santo Conterato: Na reta decisiva para a decretação da obrigatoriedade da Sociologia em todas as escolas de ensino médio do país os sindicatos dos sociólogos, sem dúvida, foram os atores fundamentais. No entanto, não teríamos chegado a essa etapa da luta sem a participação, na origem do movimento, de grupos organizados da sociedade, de departamentos universitários, dos estudantes de ciências sociais e do ensino médio. Inúmeros movimentos locais em várias regiões do país foram o gérmen que deu seiva à luta pela inclusão da sociologia no ensino médio nacional. A título de ilustração, sirva-nos de exemplo o movimento aqui em nosso estado. Entre outros, um abaixo-assinado encaminhado à “Coordenadora Setorial da Coordenação de Ensino do 2º Grau” de Nova Friburgo, em 1º de outubro de 1985: “Encaminhamos pedido formulado por Sociólogos e Professores do 2º Grau dos Municípios ligados ao CRE de Nova Friburgo, solicitando a inclusão da SOCIOLOGIA no currículo do 2º Grau”. Atenção à data. E, em 1989, a APSERJ conseguiu recolher mais de 3.000 (três mil) assinaturas em documento enviado à Assembléia Constituinte do Estado do Rio de Janeiro solicitando a inclusão da sociologia em todas as escolas do ensino médio. E o Conselho Estadual de Educação, junto com a Secretaria Estadual de Educação realizaram dois encontros, em 1989, para estudar a possibilidade de inclusão da sociologia na grade curricular. Além da APSERJ, participaram mais quinze grupos, entre universidades, sindicatos de professores e associações de estudantes secundários. Tudo isso está relatado no livro, publicado pela APSERJ, “A Profissão de Sociólogo e Sociologia no Ensino Médio”. Assim, desde 1989, a sociologia consta como disciplina obrigatória nas escolas do Rio de Janeiro.
Movimentos similares aconteceram em vários estados que deram substrato e força para que os sindicatos dos sociólogos conseguissem, junto ao Conselho Nacional de Educação, a decretação da obrigatoriedade da disciplina em todas as escolas de ensino médio do país.

A Revista Habitus agradece aos entrevistados Márcio da Costa e Santo Conterato.

07 junho, 2010

GT Em Defesa do Ensino de Sociologia

UFF. GT Em Defesa do Ensino de Sociologia
09 de junho de 2010. 18:00
DARS de Ciências Sociais Térreo Bloco N
Por conta de vários fatores colocados pelos colegas, temos deficiências em nossa formação acadêmica, e não só temos e admitimos a deficiência que temos em nosso processo de formação, como a reproduzimos no Ensino Médio enquanto professores:
- Uma pretensa e ingênua neutralidade
- Um afastamento e certo menosprezo pelos alunos
- O afastamento entre teoria e prática
O grupo começou a se reunir preocupado com a confusão que se instaura nas propostas e práticas curriculares para o ensino de Sociologia para o Ensino Médio, e equívocos que têm como causa o já longo processo de intermitência da disciplina na Educação Básica, além das questões que permeiam o Ensino Superior, essenciais para a formação dos professores neste caso. Já existe um acúmulo de conhecimento sobre isso, ainda que escasso. O grupo para dar andamento à construção do currículo e de materiais didáticos precisa se colocar comum acordo com as seguintes premissas:
ü Sociologia, entre os saberes que existem é uma ciência. Portanto não é senso comum, não é religião, não é filosofia (apesar de utilizá-la).
ü Sociologia com relação às outras disciplinas não é literatura, não é história, não é geografia, e, como já citado, não é filosofia.
ü O currículo do Ensino Médio não deve se deter a uma miscelânea teórica, temática ou conceitual e sim fazer sentido e ter uma lógica com o que consideramos que é realmente necessário no contexto que vivemos e neste nível de ensino, em contraste com o ensino superior.
ü O professor deve trabalhar de acordo com uma sólida fundamentação teórica, pois terá facilidade em construir o currículo, dando lógica para o mesmo e inclusive mais segurança para trabalhar com outros pontos de vista, quando necessário.
CONVIDAMOS. GT EM DEFESA DO ENSINO DE SOCIOLOGIA.