Entrevista com Amauri César Moraes
Dedicamos este
espaço a entrevistar sociólogos (as) renomados (as) que atuam em áreas
distintas da nossa profissão no país. Em função das mudanças em curso e os
debates sobre questões relacionadas tanto ao ensino de Sociologia no Ensino
Médio como às mudanças desse nível de ensino no país, a redação da revista
entendeu por bem realizar nova conversa com o Prof. Amauri, da USP.
Amaury Cesar Moraes
Bacharel e
licenciado em
Ciências Sociais e em Filosofia pela USP; mestre em Ciência Política
e Doutor em Educação pela USP. Professor de Metodologia do Ensino de Ciências
Sociais da Faculdade de Educação da USP.
Você acompanhou a luta dos sociólogos brasileiros e
das suas entidades representativas acadêmicas e sindicais entre 1987 e 2008,
para alterar a LDB de dezembro de 1996, que previa a obrigatoriedade do ensino
da Sociologia no Ensino Médio, mas nunca fora cumprida por interpretações
diversas. Que balanço você faz desses 11 anos de luta você faz?
Bem,
comecemos por uma correção: estou nessa lida desde 1985, ainda quando era
professor do antigo 2º Grau em escola pública e participei de discussões sobre
ensino de Sociologia, promovidas pela equipe de Sociologia da CENP/SEE/SP.
Outra correção: a luta pela modificação da LDB (Lei nº 9.394/96) começa
propriamente com o projeto do então deputado Padre Roque, que é de 1997, logo
depois de a LDB ser promulgada. O padre Roque teve uma visão muito clara do
problema que estava embutido no parágrafo e inciso que aludia ao ensino de
Filosofia e Sociologia na LDB: percebeu que dali não sairia coelho nenhum. As
DCNEM, elaboradas pela Profª Guiomar de Mello, deixavam claro, do ponto de vista
do governo de então e instituições privadas de Ensino Médio que “não convinha”
uma leitura estrita da legislação.
Começou,
então, a mobilização pela obrigatoriedade de Sociologia e Filosofia e o resto nós
sabemos, as idas e vindas do processo. No fim, creio que serviu para criar uma
comunidade de professores, universitários e de Ensino Médio, voltados para a
questão do ensino de Sociologia. Temos feito muitos eventos, na maior parte
organizados por entidades acadêmicas, como a SBS, pois após certa integração
entre sindicatos e entidades acadêmicas, durante a luta mais aguerrida contra
os opositores da obrigatoriedade, voltamos ao status quo ante:
sindicatos de um lado, sociedades acadêmicas do outro. Infelizmente, da parte
dos professores universitários, o que
interessa é sobretudo aquilo que lhes rende publicação, participação em eventos
acadêmicos e que alimentam o currículo. Da parte dos sindicatos, a luta pela Sociologia
também foi um pouco corporativa, coisa de momento – garantir mercado de trabalho
para seus associados -, mas o dia seguinte, esse tem sido preocupação
basicamente de professores de metodologia ou prática do ensino de Ciências Sociais
e de Sociologia e aí temos feito tudo o que podemos. Falta ainda os professores
de Ensino Médio buscar aproximar-se dos eventos, das universidades a fim de
manter o contato com o que se pesquisa, discute e propõe para além de sua
formação inicial.
Há diversos estudos, propostas, debates em curso no
Conselho Nacional de Educação – CNE, em sua Câmara de Ensino Básico, que modificam
profundamente o chamado Ensino Médio no país, o antigo 2º grau. Um deles, é
voltar a dividir esse nível de ensino, como já foi no passado, nas três áreas
clássicas da ciência, como humanas, exatas e biomédicas. Qual sua opinião sobre
isso? Eventualmente a nossa disciplina de Sociologia deveria aparecer nas três
áreas?
Infelizmente
o parecer do CNE sobre um possível novo Ensino Médio tem um defeito básico:
muito verbo e pouca verba. Parece que o atual parecer (de maio de 2011) tenta
concorrer com o parecer anterior (as tais DCNEM, de 1998) e fala de tudo e
acaba não tendo objetividade no que propõe: percorre todos os temas, fala das
múltiplas determinações da coisa, mas não dá uma identidade ao Ensino Médio,
que, aliás, se perde desde o nome – meio, o que fica no meio, entre o ensino
elementar e o ensino superior. A história do Ensino Médio no Brasil é uma aula
sobre essa falta de identidade: tivemos ensino primário e ensino superior antes
de termos ensino secundário, que foi sendo formando ao longo dos anos, no meio,
chamado durante anos de secundário. Também aqui uma definição por oposição ou
sequência, mas não identidade. Precisamos fazer uma ruptura com isso, com essa
indefinição.
Acho que
também se procurou ainda fazer uma conciliação entre o que veio antes, do
governo FHC, e o que foi proposto logo no começo do governo Lula – os debates
promovidos pela Semtec, pela Profª Marise Ramos, Gaudêncio Frigoto etc. -, mas
que são coisas muitas vezes contraditórias: uma, baseia-se nessa tentativa de
globalizar a educação a partir da chamada Pedagogia das Competências – uma
nacionalização da proposta do Ministro da França J. P. Chevènement; Apprendre pour entreprendre, aprender
para empreender. A outra proposta busca uma definição de currículo de acordo
com uma tradição mais voltada para o mundo da cultura, trabalho e ciência (e
tecnologia); uma mais econômico-psicologizante, outra mais
cultural-sociologizante. Enfim, parece que ainda sofremos desse mal muito
atávico em educação de fazermos conciliações, não sermos radicais, usar o
melhor de cada teoria etc. que no fim não dá em nada e daqui a uns anos
voltamos às comissões, audiências e fazemos uma reforma híbrida, e como todo
híbrido, é estéril...
Essa
proposta de se dividir em ênfases, eu mesmo já vinha propondo e na audiência
pública do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, em fins de 1999, fiz a
sugestão de organização das escolas conforme a área: artes, humanidades e
ciências naturais. A cada três escolas próximas, que atendem a uma comunidade,
uma daria maior ênfase a uma das áreas, e os alunos faziam um primeiro e/ou
segundo ano geral, básico, e o segundo e/ou terceiro numa área específica. Isso
até foi inscrito nas Diretrizes Estaduais do Ensino Médio, mas a tendência centralista
de diretores de escolas não permite que se façam experiências e que se pratique
a autonomia das escolas. Esta só é invocada para impedir que a Sociologia faça
parte do currículo.
Ainda sobre as reformulações do currículo do Ensino
Médio, a mídia volta a noticiar mudanças nos conteúdos, nos currículos e nas
disciplinas obrigatórias. Pode tudo ser balão de ensaio, mas já temos ouvido
falar que Sociologia e Filosofia não seriam obrigatórias ou eventualmente
poderiam ser ensinadas de forma não presencial. O que você tem a dizer sobre
isso?
A possibilidade
de ensino à distância dessas disciplinas já vem sendo concretizado por algumas
escolas privadas, aqui do Estado de São Paulo. A liberdade para fazer isso foi
dada desde a LDB, depois foram feitas e aprovadas no CNE propostas nesse
sentido. No estado de São Paulo, o CEE também aprovou disposição que permite
fazê-lo. Não sou contra o ensino à distância, mas acho que, como tudo, as
coisas devem ser ao menos responsáveis, e vejo que essa modalidade de ensino
tem sido usada para soluções discutíveis, como essa para excluir essas
disciplinas do currículo, a fim de dar espaço para aquelas que “caem no
vestibular”. Do meu ponto de vista, se a escola pública não tomar esse caminho,
já fico satisfeito. O que acontece na escola privada não me interessa. Os pais
devem ter consciência sobre o que estão oferecendo para seus filhos e pagando
por isso: se uma formação efetiva ou um treinamento para passar no vestibular.
Em plano nacional, nossa Lei nº 11.684, de 2 de junho
de 2008, que obrigou definitivamente o ensino de S&F nas escolas médias do
país, completou em junho passado, três anos. Que balanço, nacional e estadual,
você poderia nos fazer sobre o ensino de nossa ciência no momento atual?
Parece
que a lei alargou e aprofundou o ensino dessas disciplinas. Ainda há, no
entanto, muita instituição, pública e privada, que vem se portando ao arrepio
da lei – há institutos federais que não têm tais disciplinas no currículo,
alegando que são escolas técnicas, de quatro anos etc., quando parecer do CNE
diz que todas as escolas, pouco importa a organização curricular, devem manter
tal ensino.
Outra
coisa: têm surgido cursos de licenciatura em Sociologia, também ao arrepio da
lei; as Diretrizes de Cursos Superiores, no caso para Ciências Sociais, falam
das três ciências para a formação do egresso. Não fala da criação de cursos
separados. Mas, tanto estão aparecendo cursos superiores de cada uma das
Ciências Sociais – Sociologia, Antropologia e Ciência Política – como cursos de
licenciaturas específicos, quando a disciplina escolar, embora leve o nome de
Sociologia, sempre consagrou conteúdos das três ciências. Ou seja, no Brasil,
parece, ainda vigora o adágio atribuído a Getúlio: “A lei, ora a lei”.
Você é professor de prática de ensino de Sociologia
da Faculdade de Educação da USP, umas das mais renomadas do país. Seja na USP
onde você leciona, ou em outros cursos de licenciatura em Ciências Sociais ,
como anda a formação de professores em nossa área? Existem mesmo falta de professores
como a imprensa sempre noticia?
Começando
pelo fim: existe falta de professores de Sociologia e de Filosofia como de
Física, Matemática, Geografia entre outras. A proporção deve ser a mesma.
Lecionei em uma escola em que a professora de Língua Portuguesa dava aulas de
Química porque não havia professor de Química. Questionada por mim, ela dizia
que dava “interpretação de texto”: lia e explicava para os alunos o que o autor
queria dizer. Pois hoje minha enteada estuda em outra escola púbica que não tem
professor de Língua Portuguesa. O problema é simples: não há como recrutar
quantitativa e qualitativamente profissionais com o salário pago pelos
governos. Se pagarem mais, derem melhores condições de trabalho, adotarem planos
de carreira, concursos de ingresso e ascensão na carreira, logo terão melhores
professores.
Agora a
segunda parte: mas mesmo esses melhores professores não serão os professores
melhores, pois a formação inicial ainda é muito precária; de um modo geral, o
tempo destinado ao bacharelado acaba inviabilizando um aperfeiçoamento da
licenciatura, além de estigmatizar essa outra formação, dando a ilusão de que
todos serão pesquisadores e farão carreira no ensino superior etc. Devemos
começar por rever os próprios cursos de graduação, com a possibilidade, em
nosso caso, de termos um curso básico de Ciências Sociais e depois uma
especialização em Magistério (professor do ensino médio), Sociologia
(sociólogo), Antropologia (antropólogo) e Ciência Política (cientista político
ou politólogo).
O Estado de SP foi talvez o último dos estados
brasileiros a cumprir a legislação nacional, respaldado por um Conselho
Estadual de Educação, dominado por representantes do ensino privado. Você
inclusive sofreu processos judiciais de um dos expoentes desse setor por
defender a escola pública. Como você avalia a implantação da Sociologia no
Estado? A carga horária é metade de filosofia? A Lei obrigada o ensino nas três
séries e aqui só ministram em uma? Como são as atribuições das aulas?
O
processo que venho sofrendo desde 2006 – porque ainda não se encerrou, dado que
tendo perdido em 1ª Instância, o querelante recorreu – resultou de um artigo
que publiquei no Jornal da USP e que foi motivado por ter visto uma reportagem
na TV que tratava de alunos que estavam concluindo de Ensino Médio sem nunca
terem visto aulas de Física.
Por fim, sabemos que você, junto com a professora
Elisabeth Guimarães (UFU) e Nelson Tomazzi (UEL) foram os redatores das
Orientações Curriculares Nacionais para o ensino de Sociologia. Como andam os
debates sobre uma eventual proposta de currículo mínimo de Sociologia no país?
Essa
questão se liga à anterior. Nas Orientações tivemos como objetivos elaborar
“orientações” e não uma lista de conteúdos que seria arbitrária, autoritária e inócua;
inócua porque os professores, em termos de conteúdo, dão o que eles querem dar
– ou o que sabem ou podem dar, de acordo com sua consciência e formação.
Não
entramos na campanha pela obrigatoriedade apenas para aprová-la. Como disse
estou nessa história desde 1985, tenho compromisso com isso e principalmente
com a escola pública. Minha ideia é que isso tudo é um processo, e no nosso
caso, um processo em que está em causa construir uma história da disciplina que
não tem a mesma dinâmica das outras, já consagradas, estabelecidas, apesar de
pairar sobre elas muita dúvida quanto à legitimidade quantitativa e
qualitativa.
Assim,
penso que tudo isso deve levar ainda uma ou duas décadas até que a disciplina
esteja consolidada e faça diferença na formação do jovem brasileiro. Quem sabe,
ao fim desse tempo, podemos pensar em um currículo mínimo? Antes, hoje ou
quando escrevemos as Orientações seria – vale a pena repetir para refletirem a
respeito – arbitrário, autoritário e inócuo.