09 janeiro, 2012

Entrevista com Amauri César Moraes - USP


Entrevista com Amauri César Moraes

Dedicamos este espaço a entrevistar sociólogos (as) renomados (as) que atuam em áreas distintas da nossa profissão no país. Em função das mudanças em curso e os debates sobre questões relacionadas tanto ao ensino de Sociologia no Ensino Médio como às mudanças desse nível de ensino no país, a redação da revista entendeu por bem realizar nova conversa com o Prof. Amauri, da USP.

Amaury Cesar Moraes

Bacharel e licenciado em Ciências Sociais e em Filosofia pela USP; mestre em Ciência Política e Doutor em Educação pela USP. Professor de Metodologia do Ensino de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da USP.

Você acompanhou a luta dos sociólogos brasileiros e das suas entidades representativas acadêmicas e sindicais entre 1987 e 2008, para alterar a LDB de dezembro de 1996, que previa a obrigatoriedade do ensino da Sociologia no Ensino Médio, mas nunca fora cumprida por interpretações diversas. Que balanço você faz desses 11 anos de luta você faz?

Bem, comecemos por uma correção: estou nessa lida desde 1985, ainda quando era professor do antigo 2º Grau em escola pública e participei de discussões sobre ensino de Sociologia, promovidas pela equipe de Sociologia da CENP/SEE/SP. Outra correção: a luta pela modificação da LDB (Lei nº 9.394/96) começa propriamente com o projeto do então deputado Padre Roque, que é de 1997, logo depois de a LDB ser promulgada. O padre Roque teve uma visão muito clara do problema que estava embutido no parágrafo e inciso que aludia ao ensino de Filosofia e Sociologia na LDB: percebeu que dali não sairia coelho nenhum. As DCNEM, elaboradas pela Profª Guiomar de Mello, deixavam claro, do ponto de vista do governo de então e instituições privadas de Ensino Médio que “não convinha” uma leitura estrita da legislação.

Começou, então, a mobilização pela obrigatoriedade de Sociologia e Filosofia e o resto nós sabemos, as idas e vindas do processo. No fim, creio que serviu para criar uma comunidade de professores, universitários e de Ensino Médio, voltados para a questão do ensino de Sociologia. Temos feito muitos eventos, na maior parte organizados por entidades acadêmicas, como a SBS, pois após certa integração entre sindicatos e entidades acadêmicas, durante a luta mais aguerrida contra os opositores da obrigatoriedade, voltamos ao status quo ante: sindicatos de um lado, sociedades acadêmicas do outro. Infelizmente, da parte dos professores universitários, o que interessa é sobretudo aquilo que lhes rende publicação, participação em eventos acadêmicos e que alimentam o currículo. Da parte dos sindicatos, a luta pela Sociologia também foi um pouco corporativa, coisa de momento – garantir mercado de trabalho para seus associados -, mas o dia seguinte, esse tem sido preocupação basicamente de professores de metodologia ou prática do ensino de Ciências Sociais e de Sociologia e aí temos feito tudo o que podemos. Falta ainda os professores de Ensino Médio buscar aproximar-se dos eventos, das universidades a fim de manter o contato com o que se pesquisa, discute e propõe para além de sua formação inicial.

Há diversos estudos, propostas, debates em curso no Conselho Nacional de Educação – CNE, em sua Câmara de Ensino Básico, que modificam profundamente o chamado Ensino Médio no país, o antigo 2º grau. Um deles, é voltar a dividir esse nível de ensino, como já foi no passado, nas três áreas clássicas da ciência, como humanas, exatas e biomédicas. Qual sua opinião sobre isso? Eventualmente a nossa disciplina de Sociologia deveria aparecer nas três áreas?

Infelizmente o parecer do CNE sobre um possível novo Ensino Médio tem um defeito básico: muito verbo e pouca verba. Parece que o atual parecer (de maio de 2011) tenta concorrer com o parecer anterior (as tais DCNEM, de 1998) e fala de tudo e acaba não tendo objetividade no que propõe: percorre todos os temas, fala das múltiplas determinações da coisa, mas não dá uma identidade ao Ensino Médio, que, aliás, se perde desde o nome – meio, o que fica no meio, entre o ensino elementar e o ensino superior. A história do Ensino Médio no Brasil é uma aula sobre essa falta de identidade: tivemos ensino primário e ensino superior antes de termos ensino secundário, que foi sendo formando ao longo dos anos, no meio, chamado durante anos de secundário. Também aqui uma definição por oposição ou sequência, mas não identidade. Precisamos fazer uma ruptura com isso, com essa indefinição.

Acho que também se procurou ainda fazer uma conciliação entre o que veio antes, do governo FHC, e o que foi proposto logo no começo do governo Lula – os debates promovidos pela Semtec, pela Profª Marise Ramos, Gaudêncio Frigoto etc. -, mas que são coisas muitas vezes contraditórias: uma, baseia-se nessa tentativa de globalizar a educação a partir da chamada Pedagogia das Competências – uma nacionalização da proposta do Ministro da França J. P. Chevènement; Apprendre pour entreprendre, aprender para empreender. A outra proposta busca uma definição de currículo de acordo com uma tradição mais voltada para o mundo da cultura, trabalho e ciência (e tecnologia); uma mais econômico-psicologizante, outra mais cultural-sociologizante. Enfim, parece que ainda sofremos desse mal muito atávico em educação de fazermos conciliações, não sermos radicais, usar o melhor de cada teoria etc. que no fim não dá em nada e daqui a uns anos voltamos às comissões, audiências e fazemos uma reforma híbrida, e como todo híbrido, é estéril...

Essa proposta de se dividir em ênfases, eu mesmo já vinha propondo e na audiência pública do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, em fins de 1999, fiz a sugestão de organização das escolas conforme a área: artes, humanidades e ciências naturais. A cada três escolas próximas, que atendem a uma comunidade, uma daria maior ênfase a uma das áreas, e os alunos faziam um primeiro e/ou segundo ano geral, básico, e o segundo e/ou terceiro numa área específica. Isso até foi inscrito nas Diretrizes Estaduais do Ensino Médio, mas a tendência centralista de diretores de escolas não permite que se façam experiências e que se pratique a autonomia das escolas. Esta só é invocada para impedir que a Sociologia faça parte do currículo.

Ainda sobre as reformulações do currículo do Ensino Médio, a mídia volta a noticiar mudanças nos conteúdos, nos currículos e nas disciplinas obrigatórias. Pode tudo ser balão de ensaio, mas já temos ouvido falar que Sociologia e Filosofia não seriam obrigatórias ou eventualmente poderiam ser ensinadas de forma não presencial. O que você tem a dizer sobre isso?

A possibilidade de ensino à distância dessas disciplinas já vem sendo concretizado por algumas escolas privadas, aqui do Estado de São Paulo. A liberdade para fazer isso foi dada desde a LDB, depois foram feitas e aprovadas no CNE propostas nesse sentido. No estado de São Paulo, o CEE também aprovou disposição que permite fazê-lo. Não sou contra o ensino à distância, mas acho que, como tudo, as coisas devem ser ao menos responsáveis, e vejo que essa modalidade de ensino tem sido usada para soluções discutíveis, como essa para excluir essas disciplinas do currículo, a fim de dar espaço para aquelas que “caem no vestibular”. Do meu ponto de vista, se a escola pública não tomar esse caminho, já fico satisfeito. O que acontece na escola privada não me interessa. Os pais devem ter consciência sobre o que estão oferecendo para seus filhos e pagando por isso: se uma formação efetiva ou um treinamento para passar no vestibular.

Em plano nacional, nossa Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, que obrigou definitivamente o ensino de S&F nas escolas médias do país, completou em junho passado, três anos. Que balanço, nacional e estadual, você poderia nos fazer sobre o ensino de nossa ciência no momento atual?

Parece que a lei alargou e aprofundou o ensino dessas disciplinas. Ainda há, no entanto, muita instituição, pública e privada, que vem se portando ao arrepio da lei – há institutos federais que não têm tais disciplinas no currículo, alegando que são escolas técnicas, de quatro anos etc., quando parecer do CNE diz que todas as escolas, pouco importa a organização curricular, devem manter tal ensino.

Outra coisa: têm surgido cursos de licenciatura em Sociologia, também ao arrepio da lei; as Diretrizes de Cursos Superiores, no caso para Ciências Sociais, falam das três ciências para a formação do egresso. Não fala da criação de cursos separados. Mas, tanto estão aparecendo cursos superiores de cada uma das Ciências Sociais – Sociologia, Antropologia e Ciência Política – como cursos de licenciaturas específicos, quando a disciplina escolar, embora leve o nome de Sociologia, sempre consagrou conteúdos das três ciências. Ou seja, no Brasil, parece, ainda vigora o adágio atribuído a Getúlio: “A lei, ora a lei”.

Você é professor de prática de ensino de Sociologia da Faculdade de Educação da USP, umas das mais renomadas do país. Seja na USP onde você leciona, ou em outros cursos de licenciatura em Ciências Sociais, como anda a formação de professores em nossa área? Existem mesmo falta de professores como a imprensa sempre noticia?

Começando pelo fim: existe falta de professores de Sociologia e de Filosofia como de Física, Matemática, Geografia entre outras. A proporção deve ser a mesma. Lecionei em uma escola em que a professora de Língua Portuguesa dava aulas de Química porque não havia professor de Química. Questionada por mim, ela dizia que dava “interpretação de texto”: lia e explicava para os alunos o que o autor queria dizer. Pois hoje minha enteada estuda em outra escola púbica que não tem professor de Língua Portuguesa. O problema é simples: não há como recrutar quantitativa e qualitativamente profissionais com o salário pago pelos governos. Se pagarem mais, derem melhores condições de trabalho, adotarem planos de carreira, concursos de ingresso e ascensão na carreira, logo terão melhores professores.

Agora a segunda parte: mas mesmo esses melhores professores não serão os professores melhores, pois a formação inicial ainda é muito precária; de um modo geral, o tempo destinado ao bacharelado acaba inviabilizando um aperfeiçoamento da licenciatura, além de estigmatizar essa outra formação, dando a ilusão de que todos serão pesquisadores e farão carreira no ensino superior etc. Devemos começar por rever os próprios cursos de graduação, com a possibilidade, em nosso caso, de termos um curso básico de Ciências Sociais e depois uma especialização em Magistério (professor do ensino médio), Sociologia (sociólogo), Antropologia (antropólogo) e Ciência Política (cientista político ou politólogo).

O Estado de SP foi talvez o último dos estados brasileiros a cumprir a legislação nacional, respaldado por um Conselho Estadual de Educação, dominado por representantes do ensino privado. Você inclusive sofreu processos judiciais de um dos expoentes desse setor por defender a escola pública. Como você avalia a implantação da Sociologia no Estado? A carga horária é metade de filosofia? A Lei obrigada o ensino nas três séries e aqui só ministram em uma? Como são as atribuições das aulas?

O processo que venho sofrendo desde 2006 – porque ainda não se encerrou, dado que tendo perdido em 1ª Instância, o querelante recorreu – resultou de um artigo que publiquei no Jornal da USP e que foi motivado por ter visto uma reportagem na TV que tratava de alunos que estavam concluindo de Ensino Médio sem nunca terem visto aulas de Física.

Em São Paulo, as escolas públicas vêm cumprindo a lei. Podemos discutir a quantidade de aulas, mas isso não ficou estabelecido na Lei 11.684 de 2 de junho de 2008. O que ficou é que deveria ser em todas as séries, e aí temos de nos haver com as lutas internas nas escolas ou nas secretarias de educação – que, diga-se de passagem, de um modo geral têm se portado como a de São Paulo. Isso sei por que tenho andando pelo Brasil e conferido. A versão anterior da obrigatoriedade, aprovada pelo CNE em 2006, a partir de um parecer elaborado por mim, não dizia quanto e em que séries deveria haver Sociologia e Filosofia. Assim, podemos estar confundido as coisas: o que é que se quer ensinar com a disciplina Sociologia? “Toda Sociologia”, todos os conteúdos das Ciências Sociais? Tem surgido uma proposta de que o essencial é ensinar-se a “pensar sociologicamente”, desenvolver o “olhar sociológico”. Ora, para isso não se trata de quantidade, mas de qualidade. Outra coisa é se é pedagógico ter-se uma aula por semana.

Por fim, sabemos que você, junto com a professora Elisabeth Guimarães (UFU) e Nelson Tomazzi (UEL) foram os redatores das Orientações Curriculares Nacionais para o ensino de Sociologia. Como andam os debates sobre uma eventual proposta de currículo mínimo de Sociologia no país?

Essa questão se liga à anterior. Nas Orientações tivemos como objetivos elaborar “orientações” e não uma lista de conteúdos que seria arbitrária, autoritária e inócua; inócua porque os professores, em termos de conteúdo, dão o que eles querem dar – ou o que sabem ou podem dar, de acordo com sua consciência e formação.

Não entramos na campanha pela obrigatoriedade apenas para aprová-la. Como disse estou nessa história desde 1985, tenho compromisso com isso e principalmente com a escola pública. Minha ideia é que isso tudo é um processo, e no nosso caso, um processo em que está em causa construir uma história da disciplina que não tem a mesma dinâmica das outras, já consagradas, estabelecidas, apesar de pairar sobre elas muita dúvida quanto à legitimidade quantitativa e qualitativa.

Assim, penso que tudo isso deve levar ainda uma ou duas décadas até que a disciplina esteja consolidada e faça diferença na formação do jovem brasileiro. Quem sabe, ao fim desse tempo, podemos pensar em um currículo mínimo? Antes, hoje ou quando escrevemos as Orientações seria – vale a pena repetir para refletirem a respeito – arbitrário, autoritário e inócuo.